sexta-feira, outubro 15, 2004

Mundos

Cedo se conheceram e cedo se amaram.
Cedo se juntaram e ainda mais cedo se abandonaram.
Deles ficou apenas o cedo.
Deste resto, que nem resto seria se não houvesse quem ficasse para contar a história, sobrou uma vida sem tempo e sem pressa e sem conhecer a razão que a criou.
São estas vidas que fazem uma parte da Murtosa em que vivemos e a quem todos os dias viramos a face. Nem por isso deixam de viver sem tempo e fora do nosso tempo.
Espanta-me sempre que estas vidas estejam em galáxias tão longe do meu mundo. Sim, eu também sou um dos que viram a face, mesmo quando escrevo estas palavras cheias de conforto e pantufas do meu mundo.
Quando tenho que olhar nesses olhos sem tempo fico sem saber se estou no presente ou num tempo que não existe para além da minha dimensão.
Ouço-lhes as palavras e as ideias, penso como são estranhas à minha realidade e fico sem capacidade de resposta.

Hoje apareceu-me um rapazito. Um garoto em corpo de gente crescida. Olhar duro, palavras curtas, jeitos medrosos de quem não quer ouvir nem ser ouvido. Era minha obrigação fazê-lo ouvir coisas em que ele não estava interessado. Ouviu-me com os olhos distantes e os nervos a crescerem a cada som da minha boca. Continuou a ouvir-me sem mostrar interesse, cada vez mais longe.
Já na recta final das minhas palavras sem interesse, surgiu um interesse por ele e pela família. Não... já não ia ao rio... era o irmão mais velho que ia... e o outro também. E o pai? Esse não podia ir... tinham-lhe metido bruxedo na bateira. Sempre que entrava na bateira, não se pescava nada. Saindo da bateira, o peixe regressava. Assim, os irmãos pescam (ele também) e o pai anda na bruxa a desfazer o feitiço que lhe lançaram por inveja.

Caí do meu mundo.
Caí no dele.
Para quê as minhas palavras quando os mundos são tão diferentes?
Como chegar a este mundo sem o rasgar em bocados e desfazer as vidas que nele se movimentam?
Que pasto é este que alimenta tanta charlatanice viçosa?
Que está a falhar neste circuito de mundos paralelos e contínuos?

Olhei para o calendário, só para me certificar.
Sim... estamos em 2004... na Murtosa... em Portugal.

Estaremos...?

segunda-feira, outubro 11, 2004

Nobel de Economia para todos os portugueses, já!

Ouvi agora que os dois professores que ganharam o prémio Nobel da Economia defendem que o povo não deve confiar nos políticos.
Olha que grande novidade...

Proh dolor!

Adormeci no sofá!
Ó desgraça!
Perdi a conversa em família do presidente do conselho...
Terei perdido pérolas de sabedoria e de esperança?

domingo, outubro 10, 2004

Grupo Musical Bunheirense

Para quem conhece, as apresentações são desnecessárias...
Os restantes devem passar pelo Grupo Musical Bunheirense, uma das iniciativas mais válidas do Bunheiro e que ajudam a manter viva a esperança de surgirem outras coisas boas pela Murtosa.
Parabéns pelo site, parabéns pelo grupo e pela paixão de se manterem há tantas gerações a palpitar de vida e energia.

quarta-feira, outubro 06, 2004

Um postal de Natal (V)

Um Postal de Natal
(Uma história de amigos invisíveis)

V

De facto, na despensa do João havia de tudo o que era necessário para bastante tempo. Dediquei-me a cozinhar, muito embora fosse um exercício que não praticava havia algum tempo. Depois de uma refeição rápida e pouco apaladada dediquei uns instantes a meter alguma da minha roupa no armário do quarto onde me instalei. A curiosidade foi mais forte que eu e fui espreitando a casa toda, em busca de coisas que me pudessem falar do meu amigo de infância. Pouco ou nada havia na casa que a fizesse semelhante a um lar. Alguns quadros de muito bom gosto, mas poucas fotografias, apenas uma, idêntica à minha, connosco os dois quando tínhamos 9 anos, na escola.Nada da sua vida passada estava patente naquela casa. Recordei um pouco e lembrei-me que ele se tinha instalado naquela morada havia mais ou menos 3 anos... e dava a impressão que ainda havia muita coisa em caixotes. De facto, tudo mostrava que o João não era pessoa de gastar muito tempo em casa, muito menos na casa.À medida que a noite caía e a neve se amontoava nas janelas, fui desfiando as experiências destes últimos dois dias. A confusão era enorme... parecia-me um plano urdido com muita atenção por parte do João; desde a devolução do postal de Natal, a certeza de que eu viria aos Estados Unidos, a vizinha com a chave da casa, a secretária dele. Tudo me parecia tão estranho.Na televisão passavam filmes e séries alusivas ao Natal e só então percebi que no dia seguinte seria a véspera de Natal. O cansaço e a diferença horária bateram-me em cheio e adormeci no sofá da sala, vestido e com a televisão acesa.Acordei pelas 4 da manhã, enganado pela diferença horária. Estava a acabar um velho filme na televisão. Fui tomar um duche muito quente para ver se adormecia novamente.Embrulhado num toalhão de banho, deambulei pela casa. Entrei no escritório dele. Estava tudo muito arrumado – quem me dera ser assim, suspirei. Não mexi em nada, por uma questão de respeito ao meu amigo e porque também não gostava que mexessem nas minhas coisas.Peguei no telefone e liguei para Killybegs. Atendeu a mãe, muito alegre, apesar de serem sete da manhã lá. Disse-me estar tudo bem e perguntou se eu estaria a tempo da noite de Natal. Pensei um pouco e respondi que ainda não tinha grandes certezas de nada, pois não conseguira perceber o que estava a acontecer e relatei-lhe os factos e as ideias que fui colhendo ao longo do dia. Concordou comigo sobre a hipótese de permanecer em New York mais uns tempos. Lamentou a minha ausência no Natal – a primeira vez desde que me acolheram. A família iria estar toda reunida, como habitualmente.Desliguei o telefone. Senti-me triste e só.Percebi que as pessoas que constituem a nossa família são a coisa mais importante do mundo. Sem elas ficamos sós, sem apoios.Com todos estes pensamentos e com uma imensa saudade da Irlanda, consegui adormecer novamente.Quando acordei, passava das dez da manhã, senti frio. Fui à janela e vi que continuava a nevar, agora com mais intensidade.Resolvi ficar por casa e explorar o resto da casa, da garagem e do pequeno quintal da casa. Mas foi uma resolução pouco produtiva, pois tudo o resto, à semelhança da casa, pouco me dizia do meu amigo ausente.Sentei-me no sofá a bebericar um café muito forte que preparei, e fiquei a ver as notícias. Tudo na televisão anunciava a véspera de Natal.À medida que o tempo passava, fui fazendo contas mentais e tentando prever o que se estaria a passar em Killybegs, com as 5 horas de diferença entre nós. Seriam umas dezanove horas lá quando tocou o telefone da casa. Atendi. Eram os meus irmãos a perguntar por mim. Tinham acabado de chegar a casa e desejavam-me feliz noite de Natal, lamentando a minha ausência.Passada uma hora, com as saudades a aumentar exponencialmente, o telefone tocou novamente. Eram os pais que me desejavam, também, feliz noite de Natal. Informaram que se iam preparar para dar início ao jantar de Natal. A mãe perguntou onde é que eu iria passar a noite e eu disse que estava muito cansado, e que resolvi ficar por casa.O tempo foi passando e a noite chegou a New York. Acendi a lareira com a lenha que havia na garagem. Nem me dei ao trabalho de ligar as luzes. Sentei-me no sofá e fui vendo as labaredas a lamber a lenha e a projectar a sua luz fantasmagórica nas paredes da sala do João.Estava só, como nunca me sentira na vida.A nostalgia era enorme. Na Irlanda deveriam estar a iniciar a troca de presentes... e eu a milhares de quilómetros. Sozinho.Foi aí que se fez luz na minha mente!Como pudera ter sido tão burro toda a minha vida! Tão cego e tão egoísta!Enquanto eu sempre tive o amor e o carinho da minha família, o João passou a maior parte da sua vida só. A família de acolhimento não lhe deu o apoio que eu tive da minha. Cedo ficou só, logo a seguir a terminar o curso. O seu casamento durou pouco tempo, também.Meu Deus! Quantos Natais passara ele assim... só. Sem ninguém. Sabendo que eu estava feliz com a minha família!As suas cartas no Natal, ao longo de todos estes anos, deveriam estar cheias de saudade e de tristeza e eu nunca percebi. A minha habitual alegria natalícia sempre me levara a pensar que ele estaria bem e feliz.Agora compreendia tudo.Ele quisera-me mostrar o “seu” Natal. Não tivera coragem de me contar tudo isto nas suas cartas.Cansou-se de ser infeliz sem poder partilhar comigo essa dor. Deveria ter receio de me magoar.Estava imerso nestes pensamentos, sentindo-me profundamente triste pelo meu amigo, quando tocou o telefone.- Está? Daqui é o João.- João? Estou em tua casa. Onde estás? Que te aconteceu, amigo?As nossas vozes assustaram-nos, mas eu estava pouco preocupado com isso, agora.- Estou bem. Não te preocupes. Tens tudo o que precisas aí? Deixei-te a casa com tudo o que poderia ser necessário. Não te falta nada, amigo?- Obrigado, João. Está tudo óptimo. Mas faltas-me tu e a minha família. Porque é que nunca me disseste que passavas o Natal sozinho? Só agora compreendi tudo, João. Perdoa-me todos estes anos de egoísmo.- Eu sabia que compreenderias. Não me leves a mal a partida que te preguei.- Onde estás? Eu vou ter contigo!- Nem imaginas onde... Olha, há aqui alguém que te quer falar.Nem quis acreditar no que os meus ouvidos ouviam. Era a voz da mãe, em Killybegs!Ela pedia-me desculpa pela partida que ela e o João me pregaram. Sim, tinha sido ela a perceber, muito antes de mim, que o João deveria viver muito só e combinou com ele um esquema para me fazer sentir o que era a solidão.Ele estava em Killybegs.Eu estava em New York.Trocáramos de lado no espelho!Foi o princípio de uma nova fase nas nossas vidas!As cartas iriam circular à mesma, mas, daqui em diante, as visitas passariam a fazer parte das nossas vidas. Nunca mais ele passaria um Natal sozinho!Os espelhos são demasiadamente frios para se viver neles. A vida precisa de calor.
Foi isso que aprendi naquele Natal.

Um postal de Natal (IV)

Um Postal de Natal
(Uma história de amigos invisíveis)

IV

Não percebi se estava a sonhar ou se a realidade se abatera sobre mim, mas a minha cabeça estava a latejar com dores. Seria do charuto ou de todas as outras coisas. Entrava pelos cortinados do quarto uma forte luz matinal, pouco concordante com a minha ideia de Inverno. Mas era. Era uma manhã luminosa e gelada. Nevara durante a noite e os telhados dos prédios mais baixos que o meu quarto do hotel estavam cobertos de uma imaculada brancura invernal. Lá no fundo, na rua, circulavam centenas de automóveis, com a pressa-lentidão habitual das grandes cidades. Reparei no meu relógio de pulso, mas nada me dizia, pois ainda estava regulado pelo horário irlandês. Liguei a televisão e sentei-me na cama a ver as notícias desse dia. Aproveitei para acertar o relógio. Ainda não estava a sentir a diferença horária... isso viria logo mais.
Desci para tomar o pequeno almoço e pedi algumas informações na recepção sobre a melhor forma de chegar à morada que trazia gravada a fogo na memória. Disseram-me que ficava fora do centro da cidade, e o melhor seria usar um táxi. Grande novidade.
Na rua, passados poucos instantes, o porteiro usou o seu potente apito e quase milagrosamente surge um táxi. Entro e indico a morada. Tenho que repetir 3 vezes, muito devagar, para que o taxista – desta vez é um colombiano de tez escura e cabelo muito oleoso – perceba para onde quero ir.
A paisagem vai passando de selva de cimento e carne humana para estradas largas e áreas cobertas de neve, até passar para ruas com casas unifamiliares, todas iluminadas para o Natal. Dos pais natal das esquinas do centro da cidade passámos para miríades de pais natal de plástico nos jardins, devidamente acompanhados das renas e trenós de todos os tamanhos imagináveis.
Depois de algumas curvas, o táxi travou em frente a uma casa muito igual a todas as outras, mas sem enfeites de Natal ou renas. Nada.
Pedi ao taxista que esperasse e fui até à porta da casa.
Vi a identificação na caixa do correio.
Sim. A casa era a dele.
Toquei à campainha. Esperei.
Toquei novamente, mais demoradamente.
Nada.
Reparei que o passeio de acesso à garagem estava coberto de neve, pelo que ninguém saíra nesse dia.
Preparava-me para dar uma volta à casa quando vejo aproximar-se uma senhora de idade, muito sorridente que me pergunta o meu nome. Mal lhe digo quem sou, ela entrega-me uma chave.
- O João mandou-me entregar esta chave ao senhor, se alguma vez passasse por cá. Se precisar de alguma coisa, eu vivo na casa ao lado. Vou para dentro, que está muito frio para uma pessoa da minha idade. Adeus.
Quase que nem tive tempo de agradecer.
Fiz sinal ao taxista para me esperar mais alguns momentos.
Abri a porta da frente com a chave que a vizinha me dera.
Entrei.
Em cima da mesa de entrada havia um envelope. Conheci a caligrafia. Abri-o e lá dentro estava um bilhete. Aproximei-me da entrada para ter mais luz e, por entre o vapor da minha respiração fui lendo.
“Viva, caríssimo. Se estiveres a ler esta carta, é porque quebraste a barreira do tempo e entraste na minha casa. Sê bem vindo. Se desejares podes instalar-te com todo o conforto nesta casa. Deixei-te a despensa repleta. Nada te faltará, desde que saibas cozinhar, claro... Desculpa o postal de Natal que te foi devolvido, são coisas que acontecem. Não fiques nervoso a pensar que me vais encontrar daqui a instantes. Eu não estou nos Estados Unidos. Em breve receberás notícias minhas. Instala-te cá.
João.”
Estupefacto, olhei em volta. Era uma casa normal, igual a tantas outras.
Saí. Fechei a porta e fui a casa da vizinha. Toquei à campainha. A senhora abriu a porta e perguntou se eu precisava de alguma coisa. Pedi-lhe informações do meu amigo. Ela fechou a cara e disse-me que não sabia de nada. O João era um óptimo vizinho, mas nunca lhe contava nada da sua vida. Passava muitas semanas fora de casa e deixava-lhe sempre a chave, com o pedido de a entregar a uma pessoa que ela não conhecesse e que lhe desse a identificação que eu lhe dei. Disse-me que pensava tratar-se de uma brincadeira do vizinho, e só hoje percebeu que de facto existia a pessoa que ele sempre referia ao deixar a casa. Nada mais sabia.
Agradeci-lhe e regressei ao táxi, dizendo-lhe que me levasse aos serviços públicos da cidade.
Lá chegados, dirigi-me ao sector de circulação urbana e perguntei pelo Engenheiro João. Depois de me identificar, a secretária dele mandou-me entrar para um gabinete que depois percebi que era o do meu amigo e fui informado que ele estava de férias. Disse-me a secretária que, pela primeira vez o engenheiro não lhe tinha dito para onde iria nem lhe deixara contacto. Era a época de Natal e pouco havia a fazer no sector da circulação urbana, por isso o engenheiro tirara as férias que não gozara nesse verão. No entanto, estendeu-me um envelope que o engenheiro lhe tinha deixado para me entregar, caso eu passasse por lá.
Era o meu segundo espanto no mesmo dia.
Outro bilhete...
“Com que então estás transformado em detective... eu sabia que virias cá logo que não me encontrasses em casa. Espero que a minha vizinha te tenha dado a chave lá de casa. Usa-a. A minha secretária dar-te-á as chaves do meu carro, que está na garagem em casa. Espero que gostes da minha cidade.
João.”
Acabara de ler o bilhete e a sorridente secretária do meu amigo entrega-me uma chave de carro.
- As ordens que o engenheiro me deixou estão cumpridas. Bilhete e chave. Tudo entregue. Se precisar de mais algo, disponha.
Agradeci a simpatia e o café que me oferecera entretanto.
Saí para a rua.
O frio bateu-me em cheio e parecia-me que estava a acordar de um sonho. Com os ossos gelados, fiz sinal a um táxi e fui para o hotel.
Nesse mesmo dia mudei-me para casa do meu amigo.

domingo, outubro 03, 2004

Um postal de Natal (III)

Um Postal de Natal
(Uma história de amigos invisíveis)

III


“Duty free”, “duty free”.
Despertei ao som da hospedeira que circulava entre os passageiros a oferecer cigarros, perfumes e relógios sem impostos. Olhei pela janela do avião e só havia nuvens lá em baixo. Segundo o monitor do avião, estávamos a duas horas de New York. Duas horas e meia já tinham passado sem que eu desse por ela. A pressa de chegar a Dublin para embarcar na Air Lingus para New York e a confusão mental em que me encontrava foram mais fortes que eu e aproveitei o som dos motores do avião para adormecer profundamente.
Passei em revista o plano que ainda nem gizara. Iria para New York, instalar-me-ia num hotel qualquer e depois procuraria, na morada que tinha, o paradeiro do meu amigo.
Foi um verdadeiro acto de coragem, o embarcar para New York, 30 anos depois de lá ter saído. À medida que o avião se aproximava do destino, aumentava a minha ansiedade.
Recolhida a mala e carimbados todos os papéis necessários a permanecer nos Estados Unidos por tempo limitado, ainda tive que responder a um inquérito que queria saber se eu trazia animais, comida ou sementes. Ri-me interiormente com a ideia de poder ser considerado um traficante de animais e sementes...
Ainda não tinha respirado a primeira lufada de ar fora do aeroporto e já tinha um taxista a travar ruidosamente a centímetros de mim. Só tive tempo de atirar a mala para o banco de trás e sentar-me e o tipo arrancou a uma velocidade louca até à ligação com a estrada principal. Só então me olhou pelo espelho retrovisor e, numa língua estranha articulou:
- Wea tu?
Foi aí que acordei do atordoamento em que estava desde que embarquei em Dublin. Olhei para o homem e percebi que ele trazia um turbante na cabeça e repetiu a pergunta:
- Wea tu? iú spique iglish?
Respondi que sim. Percebi que ele queria saber para onde é que eu queria ir... dei-lhe a direcção de um hotel que vi numa revista em Dublin e que, segundo os meus cálculos, não estaria muito longe da morada do meu amigo.
- Ok. We be dé in an áua. – disse ele… percebi que demoraria uma hora…
As zonas em redor do aeroporto, que ia ficando para trás, estavam cobertas de um manto de branco sujo. Nevara dias antes, percebi do arrazoado do meu taxista indiano. Ao entrar na zona habitacional da cidade, os passeios estavam pejados de pessoas que corriam apressadamente de um lado para o outro.
Pensei como as pessoas são iguais em qualquer parte do globo.
As montras estavam todas decoradas de acordo com a época e viam-se Pais Natal em cada esquina da cidade. A hora prometida pelo indiano estendeu-se por mais uma e depois mais 30 minutos, até que numa travagem destemida, disse-me ele:
- hea we á. Plaza Hotel. It’s an andred an tuenti dollás.
Paguei, dei gorjeta (é uma ofensa capital não dar gorjeta naquele país... nem mais nem menos que 10% sobre os valores pagos...), saí do táxi com perfume a caril e canela e fui-me instalar no hotel.
Depois de um longo e calmo banho, antes de descer para jantar, ainda tentei mais uma vez telefonar ao meu amigo. Em vão. Não obtive qualquer resposta. Depois telefonei para a Irlanda e informei os meus pais que tinha chegado bem.
Desci à sala de jantar e refastelei-me com um imponente bife, bem regado com um bom vinho californiano. No bar li alguns jornais do dia, terminei o meu charuto com um generoso copo de Whisky Irlandês e fui para o quarto.
Aí adormeci profundamente, cansado da procura, da viagem, do bife e do charuto, ainda com o som dos motores do avião nos ouvidos e com o cheiro a caril e canela do táxi nas narinas.

sábado, outubro 02, 2004

Um postal de Natal (II)

Um Postal de Natal
(Uma história de amigos invisíveis)
II


Com a passagem dos dias, e sem que conseguisse perceber a razão da devolução do postal nem, tão pouco, a ausência que ia pesando como chumbo, foi-se-me insinuando a certeza de que algo estaria errado. Profundamente errado.
Houve uma altura, teríamos 16 anos, que propusemos trocar números de telefone para podermos falar um com o outro. A primeira vez que ouvimos a voz um do outro foi um choque tremendo. A imagem infantil que permanecia em nós ficou abalada com a realidade. Sem que fosse preciso tomar a decisão de forma explícita, o facto é que nunca mais nos telefonámos, muito embora tivéssemos sempre o número um do outro.
Consegui reunir a coragem suficiente para teclar os algarismos todos e, com o auscultador a tremer-me na mão, deixei que tocasse algumas vezes. Ninguém atendeu.
Nesse dia ainda voltei a tentar a ligação mais duas vezes. Sem resultado. Se dúvida houvera, a certeza ia tomando o seu lugar em grandes passadas.
Algo acontecera.
Impunham-se grandes resoluções.
Resoluções rápidas.
Decisões tremendas.
Que fazer?
Mandar outro postal de Natal? Escrever uma carta? Tentar a ligação telefónica novamente?
Decidir enviar um telegrama.
Telefonei para o serviço de telegramas. Ditei o texto. Ouvi a menina repetir as palavras ditadas (pareceu-me muito impessoal... o que eu ditara saiu-me com sentimento e o que me foi lido chegou-me numa onda de frieza profissional... estremeci.), confirmei a mensagem e desliguei.
No telegrama pedia-lhe que me dissesse o que estava a acontecer, que me explicasse a razão da ausência que se estava a tornar do tamanho do mundo.
Esperei um dia. Dois.
Nada.
Entretanto fui tentando a ligação telefónica.
Também nada.
Em completo desespero interior, fui pesando as hipóteses de acção, já que as primeiras estavam todas falhadas e sem solução.
A ideia de uma viagem ia tomando corpo. Cada dia parecia-me mais inevitável.
Caminhei pelas ruas já iluminadas para o Natal que se aproximava. Ia esbarrando nas pessoas que passavam apressadas. Em cada rosto fui lendo anonimatos que se arrastavam pelas mesmas ruas dia após dia. Foram poucas as caras alegres que vi. Foram poucos os sorrisos a que tive de responder com sorriso. Mesmo no meio do ruído da cidade consegui ouvir os meus passos no cimento do passeio. Por entre a pressa das pessoas e o frio que se fazia sentir consegui pensar e ordenar as ideias que andavam tão confusas.
Decidi.
Entrei numa agência de viagens e marquei passagem de avião para daí a dois dias.
Com o mesmo espírito resoluto entrei em casa, tirei a mala da lado do armário, sacudi-lhe o pó e fui enchendo-a com o indispensável para a viagem. Mentalmente fui tentando evitar que a minha consciência me interrogasse acerca desta decisão tão precipitada.
Nessa noite, depois de uma última tentativa de ligação telefónica, enquanto ouvia uma música calma e compassada, deixei que a minha mente me fugisse por uns instantes.
Revi toda uma infância com o meu amigo de 30 anos de ausência. Os sonhos infantis, os projectos, as desilusões de infância... tudo foi desfilando novamente.
Que tipo de relação havia entre nós? Teria um nome? Como compreender os sentimentos que conseguíamos ter durante tantos anos de ausência? Seria patológica uma relação destas?
Numa era em que quase tudo tem um nome e uma descrição avalizada por vários doutores de várias coisas, a nossa relação de certeza que era tão órfã quanto nós sempre fomos. A ausência de amor maternal levou-nos a procurar um no outro a solução para a falta de afectos logo desde os nossos 4 anos de idade. Acho eu. Este problema foi falado por diversas vezes nas nossas trocas de correspondência. Fomos concluindo que crescemos mutuamente apoiados um no outro, na esperança de conseguirmos superar os nossos medos, receios e incertezas. Este processo permitiu-nos uma proximidade incrível. A presença ausente, o tempo de mediação entre cada afirmação e confirmação, foi-nos permitindo cimentar os nossos caracteres pessoais de forma muito sólida. No tempo que mediava entre as nossas cartas tínhamos que ter soluções: o mundo rodava sem esperar por nós e pelos correios. E fomos encontrando essas soluções dentro de nós mesmos.
Conseguimos crescer lado a lado, com um oceano entre nós.
A vida fora-lhe mais pesada. As pessoas que o acolheram não tinham grandes meios. A sua formação escolar foi sendo feita no sistema público de ensino (cheia de problemas e de falhas). Cursou engenharia mecânica, tendo-se especializado em circuitos urbanos. Ainda não terminara o curso e conseguiu lugar nos serviços públicos da cidade onde vivia. Enquanto estudou foi dependendo de bolsas de estudo e trabalhou sempre nos tempos livres. Ao terminar o curso foi admitido como engenheiro da secção de trânsito da cidade. Aí permaneceu. Feliz. Nas cartas falava-me da alegria que sentia quando conseguia melhorar a fluidez do trânsito da cidade graças a alterações de sentido em algumas ruas, mudança de temporização de alguns semáforos. Era a sua vida. As palavras que atravessavam o oceano vinham cheias de esperança e de alegria. Falava sempre do amanhã. Raramente referia o passado. Muito menos o avaliava ou julgava.
Quer ele, quer eu, sempre considerámos que a vida só nos dera coisas boas. Nunca encontrámos espaço para destruir o passado ou acusá-lo das dificuldades que sentimos ao longo da vida.
Eu tive mais sorte. A família que me recebeu deslocou-se para outro país. Eram pessoas que estavam muito confortáveis na vida. As deslocações eram coisas habituais na sua vida e, ao longo dos 15 anos seguintes, percorri 5 países diferentes. Sempre que o “pai” era promovido, a consequência mais imediata era a preparação das malas e o início de hábitos novos numa terra nova.
Fui sempre muito apoiado por todos. A família tinha mais 2 filhos do casamento. Nunca me senti diferente deles. Fui incentivado a estudar. Nunca me obrigaram tomar decisões de acordo com os seus gostos. Os filhos do casal seguiram os passos do pai e estudaram Economia e Direito, respectivamente. Eles eram mais velhos que eu. Vi-os pensar nos cursos, e fui colhendo aprendizagens. Sempre tive um feitio muito reservado e silencioso: gosto mais de ouvir que de falar. Assim, pude pensar calmamente e optei por Direito. Percebi que todos ficaram muito agradados com a minha escolha.
Consegui acabar o curso antes de nova promoção do pai. Ainda com o canudo fresco, fiz as malas e partimos todos para a Irlanda. Os anos já iam pesando ao pai. A firma exigia-lhe muita atenção e o desgaste ia-se notando promoção atrás de promoção.
Desta vez, logo que instalados na aldeia de Killybegs, o pai declarou que se tratou da última viagem que se fazia. Ir-se-ia reformar daí a 3 anos. A decisão de ficar na Irlanda fora tomada em família e por unanimidade. O que nos apaixonou a todos foi a imensidão daquele verde e o azul do mar da Irlanda.
Semanas depois da chegada, tive oportunidade de escrever ao meu amigo de infância eterna e na resposta ele disse-me que sentira nas minhas palavras o perfume do mar e a frescura da relva. Disse-me que agora estávamos mais perto um do outro, pois o mar unia-nos, costa a costa. Ele estava na Nova Inglaterra, em New York, e eu estava em Killybegs. Com sorte, gracejava ele, podíamo-nos pôr em bicos de pés e vermo-nos um ao outro.
Consegui entrar numa sociedade de advogados com alguma influência nas cidades vizinhas da aldeia. Mas era na aldeia que eu me sentia livre e feliz.
Com a aposentação do pai, a família tornou-se muito mais alegre, pois todos fomos conseguindo encontrar tempo para dedicar uns aos outros. Os anos seguintes foram trazendo outros anos. Os filhos casaram-se com raparigas irlandesas e mudaram-se. O mais velho, o economista, foi para Dublin. O advogado rumou ao sul e lançou as bases de uma grande sociedade de advocacia transeuropeia a partir de Cork.
Eu fui ficando pela minha Killybegs, pelo silêncio da enseada que todos os dias recebia os barcos da pesca. À noite ouvia as canções vindas dos bares da rua principal e que subiam as encostas até à casa que eu escolhi para ser o meu refúgio de fim de dia. Os “meus” pais viviam a menos de 2 km da minha casa. O facto de eu ter ficado junto deles deixou os filhos mais tranquilos nas suas vidas profissionais.
Nunca me consegui decidir a casar. Creio que sempre tive medo de perder o meu espaço próprio. Partilhar foi sempre uma coisa que eu fiz sem qualquer sacrifício e sempre com alegria. Se o casamento fosse apenas um problema de partilha, creio que seria o mais feliz dos maridos. Cedo percebi que casar seria mais que partilhar, pois passava pelo problema de tornar único o que era dúplice. Não consegui convencer-me a arriscar tanto. Confessei, nessa altura, que me sentia demasiadamente preso a mim próprio para poder prescindir dessa posse a favor de outra pessoa.
Sei que me irei arrepender desse medo e dessa incapacidade de doação, mas tenho a consciência tranquila.
O meu amigo casou. Doou-se. Feriu-se. Saiu de um casamento muito doloroso, depois de 5 anos de silêncios agrestes.
Será que o nosso passado nos marcou tanto em tão pouco tempo e perdemos a capacidade de amar sem limites?
Talvez. Nunca concluímos por uma das hipóteses. Nas nossas cartas desses tempos fomos falando do tema, sem que nenhum de nós o tenha encerrado e sem sentir qualquer necessidade de o fazer.