segunda-feira, setembro 01, 2003

Tempo de militância

Não. Nunca fui militante de coisa alguma. Tentei militar nas forças armadas mas, por 4 vergonhosos e sistemáticos anos da minha vida, fui despachado da secretaria da Escola Prática de Cavalaria de Santarém com um carimbo de "Adiamento Concedido. Erro de Incorporação", meticulosamente carimbado e assinado por um ajudante de sargento que teria tido todo o prazer em me fazer a vida negra naquela unidade militar.
Falhei a militância do 25 de Abril, pois era muito novo para andar a desfilar pelas ruas a favor ou contra fosse o que fosse. Assisti impávido e sereno à queima de sedes de esquerdas e de direitas. Fui arrastado de sala em sala para esticar o braço de acordo com os mais velhos que convocavam hora a hora várias RGA's contra os professores reaccionários.
Falhei a militância na juventude, pois foi uma altura muito complicada da minha vida e não deu jeito nenhum andar nessas andanças.
Falhei a militância na idade adulta, pois nunca percebi o que era ser militante e segui a máxima de que burro velho não aprende truques novos.
Por isso, fico roído de inveja quando vejo tantos militantes em Portugal. Devem ser bem mais felizes que eu, Têm um objectivo supra pessoal. O meu egoísmo é incomensuravelmente maior que o deles que andam dia e noite a trabalhar em prole do povo anónimo. Vejo-os a correr de um lado para o outro, jovens, frescos, com gel no cabelo, fato de bom corte, gravata igual à do líder, sapatos brilhantes e afirmantes nas passadas do dono.
Eu arrumo-me para não ser abalroado por estes jovens militantes. O meu burguesismo saloio deve ficar escondido perante tanta luz social que brilha em redor deles.
Ouço-os a discutir avidamente os assuntos do dia enquanto tomam o café da manhã e a anotar apontamentos rápidos nas suas agendas impecáveis. Andam em pequenos grupos e falam sempre para telemóveis, raramente entre si. Dão frequentes entrevistas a jornais de renome e dizem sempre que não militam por razões pessoais mas pelo bem da nação portuguesa. Dizem-se sem dinheiro, mas gostam de coleccionar objectos de cultura e têm casas em sítios ecologicamente correctos. Adoram Portugal, mas não conseguem passar sem algumas idas ao estrangeiro; porém, o Verão é sempre passado perto do líder.
Lembram-me os catecúmenos primitivos:detêm a verdade e querem-na transmitir a todos sem tardança. Não temem a morte. Temem apenas o desagrado do líder.
Vejo-os partir nos seus carros novos de dois lugares, com pastas amontoadas no banco ao lado e a mala repleta de materiais de campanha. Vão preparar mais um espaço para a chegada do líder e vão galvanizar os íncolas para que o líder se sinta acolhido e feliz e para que Portugal, urbi et orbi, saiba que o líder é o melhor para o nosso futuro.
À noite, egoisticamente refastelado no meu sofá, volto a vê-los em todas as TV's a dar explicações e a tecer comentários sobre o momento que se vive. Revejo-os nos palcos, ao lado do líder, a sorrir candidamente para o povo que se amontoa em frente ao palco e a dar discretas ordens aos outros militantes.
A sua pujança é garantia de um Portugal mais forte e empreendedor. Com estas promessas de gente nova e diferente não haverá crise que nos derrote.
Sinto-me triste, pois falhei a militância. Suspiro. Levanto a minha nocturna chávena de chá fumegante, levo-a aos lábios e penso como seria a minha vida se eu tivesse conseguido ser militante...