segunda-feira, setembro 27, 2004

Um postal de Natal

Um postal de Natal
(uma história de amigos invisíveis)

I

Esta coisa começa e acaba com um postal que me regressou às mãos, por delicadeza dos serviços postais, que não encontraram o destinatário no local onde eu achava que estaria. Fiz tudo o que deveria fazer, correctamente, mas a coisa não funcionou como esperava e o papelito colorido regressou ao dono que já não esperava ser dono novamente. Quando se dá algo, ficamos com a alegria de se ter partilhado algo de nosso, mas quando esse algo regressa sentimo-nos incompreendidos, tristes, incapazes de compreender porque fomos rejeitados. Os postais têm esse dom... acho eu. Escolhemos um pedaço de cartolina colorida, escrevinhamos o que achamos serem coisas interessantes, endereçamo-los com cuidado e esperamos que eles encontrem o seu novo dono e que lhe dêem a alegria que sentimos ao enviá-los. Ficamos com a esperança do contacto ser feito de forma completa e que consigam transmitir o que pensávamos no momento do seu envio.
Foi assim com esse postal. Mas regressou, sem dono, qual órfão indesejado por todos e por muitos manipulado, carimbado, transportado e reenviado ao remetente. Deu-me que pensar, essa cartolina já amarrotada de tanta viagem. Pensei em quem queria alegrar e nas razões do regresso das minhas intenções. Farrapos de pensamento que voam mais depressa que os postais e que me obrigam a recolhê-los no fundo das lembranças para um dia repensar tudo o que fiz de bem e de mal, à velocidade da luz. Não o queria de volta. De mais a mais tinha escrevinhado umas coisas que não me apetecia estar a rever. Fica-se com a sensação de vergonha, ao receber de volta o que se enviou. Pensei na tarefa dos carteiros que andam de porta em porta a entregar as coisas mais ridículas que se possam imaginar.
Bom, mas isto nada tem a ver com o que se passou de facto.
Vamos avançar, antes que caias a dormir de cansaço de leitura de coisas sem interesse.
O facto é que o postal regressou ingloriamente ao ponto de partida e eu fiquei sem perceber a razão. Estamos de acordo?
Agora, vamos tentar perceber a arquitectura desta historieta.
Acontece que o postal deveria ter encontrado alguém a quem eu desejava dar um momento de alegria, já que a distância e a ocupação habitual não me permitiam dar essa alegria pessoalmente. Separavam-nos 30 anos de envelhecimento e ausência mútua. A amizade nascera numa infância difícil e foi-se mantendo ao longo desses 30 anos sem que outros contactos existissem para além dos papéis que fazíamos circular pelas mãos de diversos carteiros entre dois continentes separados pelo mar.
A infância decorrera de forma relativamente acidentada. As lembranças que tínhamos não nos permitiam recuar muito no tempo, mas lembrávamos cenas estranhas, gritos, confusões, desconforto. Encontrámo-nos numa casa que nos recebeu quase ao mesmo tempo e que nos apoiou ao longo de 10 anos de vida em comum. A separação deu-se nessa altura delicada das nossas vidas, tendo cada um seguido caminhos divergentes. A agravar isto, a distância tudo fez para criar esquecimento. Só muita obstinação e amizade é que nos conseguiram manter em contacto. Aprendemos rapidamente as virtudes da troca de correspondência e, sempre que nos era permitido, os carteiros em dois continentes diferentes andavam a passear papéis nossos. Foram 30 anos de trocas de ideias, sentimentos, episódios de vida, dúvidas, diferenças de pensamento, sem que nunca tenhamos tido a coragem para um reencontro pessoal. Tacitamente resolvemos nunca trocar fotografias. Apenas palavras. Descobrimos que, por esse motivo, continuámos a ter apenas 10 anos. Nada mais. Crescemos à medida que o papel foi crescendo e as palavras precisaram de mais espaço para levar todo o sentimento que tínhamos, mas nunca deixámos de ter 10 anos. Sempre nos sentimos com a liberdade das crianças. Sentíamos que ainda tínhamos as nossas asas de inocência.
As paixonetas, os amores que íamos tendo, as desilusões que nos afligiam, as dores que nos faziam companhia ao longo da vida, tudo isso foi ganhando palavras escritas. As casas por onde passámos ao longo da vida, as cores que nos foram invadindo os olhos, as pessoas que nos foram marcando, as que nos fizeram crescer, as que nos fizeram duvidar do valor de se ter nascido, as que nos deram alegrias, tristezas, esperanças, desilusões, todas elas foram passando pelo nosso palco epistolar, por vezes em atropelos de raiva, outras vezes em calma de amor. Cada página escrita levava mais que palavras. Ambos sabíamos isso.
Numa das cartas que recebi, dizia-me que lhe parecia estarmos a falar ao espelho um com o outro. Concordei e nem achei estranho. Dissemos que as lembranças não tinham desaguado em saudade, o que talvez tenha permitido a nossa amizade continuar saudável e viva. Foi nessa altura que concordámos que a ausência de imagens um do outro nos permitiu criar ideais recíprocos. Foi nesse tempo que reconhecemos que nunca conseguimos envelhecer aos olhos dos nossos espelhos. A ausência tornara-se presença pressentida e esperada.
Quando fazíamos anos, enviávamos um postal. No Natal, a mesma coisa. Mas eram as cartas trocadas os momentos de alegria e de partilha. Foi por isso que não prestei grande atenção ao regresso do postal de Natal que lhe enviara semanas antes do dia, como era nosso hábito. Sabia que mais dia menos dia iria receber o seu postal, com a indicação de uma nova morada. Não era a primeira vez que tal fenómeno acontecia. Sempre que mudávamos de casa enviávamos um postal com a nova morada para causar surpresa um ao outro.
Mas, desta vez, nesse Natal, o meu postal regressou sem dono.
Órfão.
E o dele não chegou.

quinta-feira, setembro 23, 2004

Conselhos de Concelho

Raramente ouço rádio, pois habitualmente estou a trabalhar, sentado como os velhos decrépitos e sem poder ouvir a grafonola, mas tive que fazer uma visita “ad limine” a Coimbra e pude ouvir a TSF durante a viagem.
Estava a decorrer um dos fóruns TSF sobre a educação. Obviamente.
A temática que açambarcou os telefonemas dos ouvintes foi a questão de passarem a ser as autarquias a superintender a colocação dos docentes na sua área de intervenção.
Ou seja: os tão estudados Quadros Concelhios.
Não irei emitir a minha opinião sobre a matéria, mas apenas referir, rapidamente, o que me ficou na ideia depois de ouvir muitos dos ouvintes que telefonaram para a TSF: “Nenhum deles – absolutamente nenhum – acredita que pudesse haver isenção nesse processo... as autarquias apenas colocariam os seus amigos e aqueles professores que não provocassem “ondas”.
Esta é a opinião que muitos portugueses têm das suas Câmaras Municipais.
Independentemente das transferências de competências e de orçamentos para esses exercícios de poder, o facto é que olhamos para os políticos como uma seita estranha e perigosa.
Claro que é apenas uma questão de opinião.
O facto é que os políticos locais (pelo menos os meus) olham para os professores apenas com dois filtros: ou nos vêem como atrasados mentais, ou temem-nos e tentam esmagar-nos. Em qualquer das situações, ignoram-nos. Somos uma cambada de pestes que só levantam problemas e chatices. Inventam os Conselhos Municipais de Educação e depois desatam a pedir fotocópias de ideias a outras autarquias e nem se dão ao trabalho de ouvir quem está sentado com eles nesse conselho (para os aconselhar...)... melhor ainda: entram nessa reunião, convocada pela Câmara Municipal e perguntam: “esta reunião é para quê? A minha secretária está ocupada e não me disse para que era isto. Desculpem.”
Eu não desculpo.
Lamento.

terça-feira, setembro 21, 2004

Compta aí novidades...

Não há ninguém que não tenha emitido opinião sobre o problema da colocação dos professores. Todos os órgãos de informação andam à espreita do cadáver da ministra, os sindicatos exigem-lhe a cabeça, os pais gritam pela inteligência dos filhos, os senhorios angustiam-se com as casas por alugar aos professores deslocados, os professores andam a morder os lábios e a chorar para dentro.
Em Portugal é assim mesmo. Todos têm uma colher para meter na educação e todos têm uma faquita afiadita para espetar no professor à primeira curva mais escura da vida.
O problema dos concursos resolve-se facilmente... bastava que a ministra tivesse tido a coragem de desmantelar o que estava e avançar para uma solução de compromisso por um ano lectivo (que é o que irá fazer agora)... de seguida entregava tudo ao gabinete jurídico e cortava a direito. Mas... a Compta do Couto dos Santos e do Rui Machete já tinha a maior parte do dinheiro no bolso e os accionistas andavam felizes a trocar os papéis da empresa na Bolsa que, meses antes, estava muito mal. Os mesmos que daqui a dias vão gritar que a educação é um caos em Portugal.
E a Maria do Carmo andava convencida de que um Ministério era o mesmo que o seu gabinete na Católica: novinho em folha, arrumadinho e abençoado.
Mas a realidade é outra.
Todos os ministérios são monstros administrativos que se têm replicado ao longo de gerações, tal como a TAP, a RTP, etc. Os cortes ferem interesses muito antigos e que têm todos os ministérios altamente armadilhados.
Conheci um senhor que foi parar a uma das direcções gerais do Ministério da Educação na 24 de Julho e, para ter a certeza de que os seus ofícios conseguiam sair para o correio, vinha pessoalmente meter as cartitas no CTT mais próximo.
Não serão os gritos e os jornais que irão alterar o estado de coisas.
Não são os professores que emperram o sistema.
Tenho uma escola sob a minha responsabilidade e devo confessar que os meus colegas têm tido uma postura de alta dignidade, mantendo os alunos na escola, mesmo sabendo que não irão ficar com eles para o ano todo, mas têm feito tudo para que haja sossego e paz dentro da escola e para que os pais não fiquem sem saber o que fazer com os filhos.
Daqui a meses, pais, jornais, novos ministros, rankings, e opinion makers, irão dizer que o pior do mundo são os professores.
Querem um conselho?
Educai os vossos filhos.
Ensinai-lhes o valor do respeito e da delicadeza. Ensinai-lhes a importância da vida em sociedade.
Antes de bater nos professores, venham à escola e vejam os vossos filhos lá. Como eles são lá. Ou será que a vossa memória curta já vos fez esquecer o tempo que andaram pelas escolas?
Dizia a minha avó: “quanto mais porca, mais gritará por limpeza”.

sexta-feira, setembro 17, 2004

As canas do S.Paio

A propósito de um comentário ao "S.Paio":
O que defendo não será o fim da festa, mas uma maior preocupação com o sector social (o terceiro sector).
O panem et circensis é a solução de enterrar a cabeça na areia ou de assobiar para o ar. A Torreira será a freguesia onde mais facilmente se conseguirão resolver alguns dos problemas sociais que todos conhecemos. O dinheiro da festa que fique na festa, mas que haja a preocupação de ajudar quem precisa. Transferir dinheiro para bolsos ociosos não é a solução. Virar-lhes as costas, também não. Ignorar a educação, afirmando que não há verbas ou que há indicações da associação nacional de municípios para não apoiar a educação é, a todos os níveis, revelador de uma situação anómala: é ou não é o estado um todo? Ou serão os municípios outros mini-estados?
Se há alunos portadores de deficiência e tendo os docentes tentado e conseguido algumas soluções para ajudar esses alunos, apenas precisando de transporte ao sábado para que um aluno pudesse ter aulas de recuperação numa piscina (com terapeuta e gratuitamente), como se compreende o argumento de que não há viatura, quando, dias antes, se gastaram milhares de contos numa viatura topo de gama?
Se o argumento é "à Bloco de Esquerda" e se por isso a minha revolta possa parecer menos justa, paciência.
Pela minha parte, tenho tentado agir e não apenas pregar. Tenho tentado intervir onde me é permitido e até onde os recursos me deixam, sabendo sempre respeitar limites de competências e não confundindo as instituições a que estou ligado.
Se isso é Bloco de Esquerda, orgulho-me e muito, embora não tenha "cartão" de nenhum "padrinho".
Que apanhem as canas. O S.Paio passou.

quarta-feira, setembro 08, 2004

S.Paio

Aqui ficam algumas imagens desta festa concelhia murtoseira.
É uma festa que se insere numa longa tradição popular que, ao longo dos anos, foi saindo da esfera do voluntarismo popular e passou para as mãos da autarquia.
Há quem tenha dito que era mais uma expressão de "panem et circensis". Até pode ser. Mas, o facto é que deixou de ser uma simples festa e passou a ser um barómetro da capacidade organizativa da edilidade. E isso é terrivelmente redutor.
Sendo uma expressão popular, como todas as festas está desvirtuada pelo peso comercial dos feirantes. Os negros das estatuetas diversas, os peruanos das canas sopradas, as malas Louis Vitton, os milhões de chapéus, sapatos, máquinas, motociclos, etc, transformam a avenida num encontro de gentes e culturas que pouco dizem à tradição.
Registe-se como positivo a continuação das regatas de moliceiros e as rusgas populares na noite do santo. Registe-se como negativo a pimbalhada de péssimo gosto que noite após noite poluiu a Torreira.
Dizem que se gastaram o equivalente a 14 mil contos nestes dias de festa.
Excesso? Para mim, sem dúvida. Lamento tanta despesa quando a poucos metros da festa vive uma família numa barraca onde chove e onde vive uma criança com deficiência física.
Porém, para muitos outros foi uma festa "poupadinha".
Opiniões...






S.Paio