Cedo se conheceram e cedo se amaram.
Cedo se juntaram e ainda mais cedo se abandonaram.
Deles ficou apenas o cedo.
Deste resto, que nem resto seria se não houvesse quem ficasse para contar a história, sobrou uma vida sem tempo e sem pressa e sem conhecer a razão que a criou.
São estas vidas que fazem uma parte da Murtosa em que vivemos e a quem todos os dias viramos a face. Nem por isso deixam de viver sem tempo e fora do nosso tempo.
Espanta-me sempre que estas vidas estejam em galáxias tão longe do meu mundo. Sim, eu também sou um dos que viram a face, mesmo quando escrevo estas palavras cheias de conforto e pantufas do meu mundo.
Quando tenho que olhar nesses olhos sem tempo fico sem saber se estou no presente ou num tempo que não existe para além da minha dimensão.
Ouço-lhes as palavras e as ideias, penso como são estranhas à minha realidade e fico sem capacidade de resposta.
Hoje apareceu-me um rapazito. Um garoto em corpo de gente crescida. Olhar duro, palavras curtas, jeitos medrosos de quem não quer ouvir nem ser ouvido. Era minha obrigação fazê-lo ouvir coisas em que ele não estava interessado. Ouviu-me com os olhos distantes e os nervos a crescerem a cada som da minha boca. Continuou a ouvir-me sem mostrar interesse, cada vez mais longe.
Já na recta final das minhas palavras sem interesse, surgiu um interesse por ele e pela família. Não... já não ia ao rio... era o irmão mais velho que ia... e o outro também. E o pai? Esse não podia ir... tinham-lhe metido bruxedo na bateira. Sempre que entrava na bateira, não se pescava nada. Saindo da bateira, o peixe regressava. Assim, os irmãos pescam (ele também) e o pai anda na bruxa a desfazer o feitiço que lhe lançaram por inveja.
Caí do meu mundo.
Caí no dele.
Para quê as minhas palavras quando os mundos são tão diferentes?
Como chegar a este mundo sem o rasgar em bocados e desfazer as vidas que nele se movimentam?
Que pasto é este que alimenta tanta charlatanice viçosa?
Que está a falhar neste circuito de mundos paralelos e contínuos?
Olhei para o calendário, só para me certificar.
Sim... estamos em 2004... na Murtosa... em Portugal.
Estaremos...?