quarta-feira, outubro 06, 2004

Um postal de Natal (IV)

Um Postal de Natal
(Uma história de amigos invisíveis)

IV

Não percebi se estava a sonhar ou se a realidade se abatera sobre mim, mas a minha cabeça estava a latejar com dores. Seria do charuto ou de todas as outras coisas. Entrava pelos cortinados do quarto uma forte luz matinal, pouco concordante com a minha ideia de Inverno. Mas era. Era uma manhã luminosa e gelada. Nevara durante a noite e os telhados dos prédios mais baixos que o meu quarto do hotel estavam cobertos de uma imaculada brancura invernal. Lá no fundo, na rua, circulavam centenas de automóveis, com a pressa-lentidão habitual das grandes cidades. Reparei no meu relógio de pulso, mas nada me dizia, pois ainda estava regulado pelo horário irlandês. Liguei a televisão e sentei-me na cama a ver as notícias desse dia. Aproveitei para acertar o relógio. Ainda não estava a sentir a diferença horária... isso viria logo mais.
Desci para tomar o pequeno almoço e pedi algumas informações na recepção sobre a melhor forma de chegar à morada que trazia gravada a fogo na memória. Disseram-me que ficava fora do centro da cidade, e o melhor seria usar um táxi. Grande novidade.
Na rua, passados poucos instantes, o porteiro usou o seu potente apito e quase milagrosamente surge um táxi. Entro e indico a morada. Tenho que repetir 3 vezes, muito devagar, para que o taxista – desta vez é um colombiano de tez escura e cabelo muito oleoso – perceba para onde quero ir.
A paisagem vai passando de selva de cimento e carne humana para estradas largas e áreas cobertas de neve, até passar para ruas com casas unifamiliares, todas iluminadas para o Natal. Dos pais natal das esquinas do centro da cidade passámos para miríades de pais natal de plástico nos jardins, devidamente acompanhados das renas e trenós de todos os tamanhos imagináveis.
Depois de algumas curvas, o táxi travou em frente a uma casa muito igual a todas as outras, mas sem enfeites de Natal ou renas. Nada.
Pedi ao taxista que esperasse e fui até à porta da casa.
Vi a identificação na caixa do correio.
Sim. A casa era a dele.
Toquei à campainha. Esperei.
Toquei novamente, mais demoradamente.
Nada.
Reparei que o passeio de acesso à garagem estava coberto de neve, pelo que ninguém saíra nesse dia.
Preparava-me para dar uma volta à casa quando vejo aproximar-se uma senhora de idade, muito sorridente que me pergunta o meu nome. Mal lhe digo quem sou, ela entrega-me uma chave.
- O João mandou-me entregar esta chave ao senhor, se alguma vez passasse por cá. Se precisar de alguma coisa, eu vivo na casa ao lado. Vou para dentro, que está muito frio para uma pessoa da minha idade. Adeus.
Quase que nem tive tempo de agradecer.
Fiz sinal ao taxista para me esperar mais alguns momentos.
Abri a porta da frente com a chave que a vizinha me dera.
Entrei.
Em cima da mesa de entrada havia um envelope. Conheci a caligrafia. Abri-o e lá dentro estava um bilhete. Aproximei-me da entrada para ter mais luz e, por entre o vapor da minha respiração fui lendo.
“Viva, caríssimo. Se estiveres a ler esta carta, é porque quebraste a barreira do tempo e entraste na minha casa. Sê bem vindo. Se desejares podes instalar-te com todo o conforto nesta casa. Deixei-te a despensa repleta. Nada te faltará, desde que saibas cozinhar, claro... Desculpa o postal de Natal que te foi devolvido, são coisas que acontecem. Não fiques nervoso a pensar que me vais encontrar daqui a instantes. Eu não estou nos Estados Unidos. Em breve receberás notícias minhas. Instala-te cá.
João.”
Estupefacto, olhei em volta. Era uma casa normal, igual a tantas outras.
Saí. Fechei a porta e fui a casa da vizinha. Toquei à campainha. A senhora abriu a porta e perguntou se eu precisava de alguma coisa. Pedi-lhe informações do meu amigo. Ela fechou a cara e disse-me que não sabia de nada. O João era um óptimo vizinho, mas nunca lhe contava nada da sua vida. Passava muitas semanas fora de casa e deixava-lhe sempre a chave, com o pedido de a entregar a uma pessoa que ela não conhecesse e que lhe desse a identificação que eu lhe dei. Disse-me que pensava tratar-se de uma brincadeira do vizinho, e só hoje percebeu que de facto existia a pessoa que ele sempre referia ao deixar a casa. Nada mais sabia.
Agradeci-lhe e regressei ao táxi, dizendo-lhe que me levasse aos serviços públicos da cidade.
Lá chegados, dirigi-me ao sector de circulação urbana e perguntei pelo Engenheiro João. Depois de me identificar, a secretária dele mandou-me entrar para um gabinete que depois percebi que era o do meu amigo e fui informado que ele estava de férias. Disse-me a secretária que, pela primeira vez o engenheiro não lhe tinha dito para onde iria nem lhe deixara contacto. Era a época de Natal e pouco havia a fazer no sector da circulação urbana, por isso o engenheiro tirara as férias que não gozara nesse verão. No entanto, estendeu-me um envelope que o engenheiro lhe tinha deixado para me entregar, caso eu passasse por lá.
Era o meu segundo espanto no mesmo dia.
Outro bilhete...
“Com que então estás transformado em detective... eu sabia que virias cá logo que não me encontrasses em casa. Espero que a minha vizinha te tenha dado a chave lá de casa. Usa-a. A minha secretária dar-te-á as chaves do meu carro, que está na garagem em casa. Espero que gostes da minha cidade.
João.”
Acabara de ler o bilhete e a sorridente secretária do meu amigo entrega-me uma chave de carro.
- As ordens que o engenheiro me deixou estão cumpridas. Bilhete e chave. Tudo entregue. Se precisar de mais algo, disponha.
Agradeci a simpatia e o café que me oferecera entretanto.
Saí para a rua.
O frio bateu-me em cheio e parecia-me que estava a acordar de um sonho. Com os ossos gelados, fiz sinal a um táxi e fui para o hotel.
Nesse mesmo dia mudei-me para casa do meu amigo.