quarta-feira, outubro 06, 2004

Um postal de Natal (V)

Um Postal de Natal
(Uma história de amigos invisíveis)

V

De facto, na despensa do João havia de tudo o que era necessário para bastante tempo. Dediquei-me a cozinhar, muito embora fosse um exercício que não praticava havia algum tempo. Depois de uma refeição rápida e pouco apaladada dediquei uns instantes a meter alguma da minha roupa no armário do quarto onde me instalei. A curiosidade foi mais forte que eu e fui espreitando a casa toda, em busca de coisas que me pudessem falar do meu amigo de infância. Pouco ou nada havia na casa que a fizesse semelhante a um lar. Alguns quadros de muito bom gosto, mas poucas fotografias, apenas uma, idêntica à minha, connosco os dois quando tínhamos 9 anos, na escola.Nada da sua vida passada estava patente naquela casa. Recordei um pouco e lembrei-me que ele se tinha instalado naquela morada havia mais ou menos 3 anos... e dava a impressão que ainda havia muita coisa em caixotes. De facto, tudo mostrava que o João não era pessoa de gastar muito tempo em casa, muito menos na casa.À medida que a noite caía e a neve se amontoava nas janelas, fui desfiando as experiências destes últimos dois dias. A confusão era enorme... parecia-me um plano urdido com muita atenção por parte do João; desde a devolução do postal de Natal, a certeza de que eu viria aos Estados Unidos, a vizinha com a chave da casa, a secretária dele. Tudo me parecia tão estranho.Na televisão passavam filmes e séries alusivas ao Natal e só então percebi que no dia seguinte seria a véspera de Natal. O cansaço e a diferença horária bateram-me em cheio e adormeci no sofá da sala, vestido e com a televisão acesa.Acordei pelas 4 da manhã, enganado pela diferença horária. Estava a acabar um velho filme na televisão. Fui tomar um duche muito quente para ver se adormecia novamente.Embrulhado num toalhão de banho, deambulei pela casa. Entrei no escritório dele. Estava tudo muito arrumado – quem me dera ser assim, suspirei. Não mexi em nada, por uma questão de respeito ao meu amigo e porque também não gostava que mexessem nas minhas coisas.Peguei no telefone e liguei para Killybegs. Atendeu a mãe, muito alegre, apesar de serem sete da manhã lá. Disse-me estar tudo bem e perguntou se eu estaria a tempo da noite de Natal. Pensei um pouco e respondi que ainda não tinha grandes certezas de nada, pois não conseguira perceber o que estava a acontecer e relatei-lhe os factos e as ideias que fui colhendo ao longo do dia. Concordou comigo sobre a hipótese de permanecer em New York mais uns tempos. Lamentou a minha ausência no Natal – a primeira vez desde que me acolheram. A família iria estar toda reunida, como habitualmente.Desliguei o telefone. Senti-me triste e só.Percebi que as pessoas que constituem a nossa família são a coisa mais importante do mundo. Sem elas ficamos sós, sem apoios.Com todos estes pensamentos e com uma imensa saudade da Irlanda, consegui adormecer novamente.Quando acordei, passava das dez da manhã, senti frio. Fui à janela e vi que continuava a nevar, agora com mais intensidade.Resolvi ficar por casa e explorar o resto da casa, da garagem e do pequeno quintal da casa. Mas foi uma resolução pouco produtiva, pois tudo o resto, à semelhança da casa, pouco me dizia do meu amigo ausente.Sentei-me no sofá a bebericar um café muito forte que preparei, e fiquei a ver as notícias. Tudo na televisão anunciava a véspera de Natal.À medida que o tempo passava, fui fazendo contas mentais e tentando prever o que se estaria a passar em Killybegs, com as 5 horas de diferença entre nós. Seriam umas dezanove horas lá quando tocou o telefone da casa. Atendi. Eram os meus irmãos a perguntar por mim. Tinham acabado de chegar a casa e desejavam-me feliz noite de Natal, lamentando a minha ausência.Passada uma hora, com as saudades a aumentar exponencialmente, o telefone tocou novamente. Eram os pais que me desejavam, também, feliz noite de Natal. Informaram que se iam preparar para dar início ao jantar de Natal. A mãe perguntou onde é que eu iria passar a noite e eu disse que estava muito cansado, e que resolvi ficar por casa.O tempo foi passando e a noite chegou a New York. Acendi a lareira com a lenha que havia na garagem. Nem me dei ao trabalho de ligar as luzes. Sentei-me no sofá e fui vendo as labaredas a lamber a lenha e a projectar a sua luz fantasmagórica nas paredes da sala do João.Estava só, como nunca me sentira na vida.A nostalgia era enorme. Na Irlanda deveriam estar a iniciar a troca de presentes... e eu a milhares de quilómetros. Sozinho.Foi aí que se fez luz na minha mente!Como pudera ter sido tão burro toda a minha vida! Tão cego e tão egoísta!Enquanto eu sempre tive o amor e o carinho da minha família, o João passou a maior parte da sua vida só. A família de acolhimento não lhe deu o apoio que eu tive da minha. Cedo ficou só, logo a seguir a terminar o curso. O seu casamento durou pouco tempo, também.Meu Deus! Quantos Natais passara ele assim... só. Sem ninguém. Sabendo que eu estava feliz com a minha família!As suas cartas no Natal, ao longo de todos estes anos, deveriam estar cheias de saudade e de tristeza e eu nunca percebi. A minha habitual alegria natalícia sempre me levara a pensar que ele estaria bem e feliz.Agora compreendia tudo.Ele quisera-me mostrar o “seu” Natal. Não tivera coragem de me contar tudo isto nas suas cartas.Cansou-se de ser infeliz sem poder partilhar comigo essa dor. Deveria ter receio de me magoar.Estava imerso nestes pensamentos, sentindo-me profundamente triste pelo meu amigo, quando tocou o telefone.- Está? Daqui é o João.- João? Estou em tua casa. Onde estás? Que te aconteceu, amigo?As nossas vozes assustaram-nos, mas eu estava pouco preocupado com isso, agora.- Estou bem. Não te preocupes. Tens tudo o que precisas aí? Deixei-te a casa com tudo o que poderia ser necessário. Não te falta nada, amigo?- Obrigado, João. Está tudo óptimo. Mas faltas-me tu e a minha família. Porque é que nunca me disseste que passavas o Natal sozinho? Só agora compreendi tudo, João. Perdoa-me todos estes anos de egoísmo.- Eu sabia que compreenderias. Não me leves a mal a partida que te preguei.- Onde estás? Eu vou ter contigo!- Nem imaginas onde... Olha, há aqui alguém que te quer falar.Nem quis acreditar no que os meus ouvidos ouviam. Era a voz da mãe, em Killybegs!Ela pedia-me desculpa pela partida que ela e o João me pregaram. Sim, tinha sido ela a perceber, muito antes de mim, que o João deveria viver muito só e combinou com ele um esquema para me fazer sentir o que era a solidão.Ele estava em Killybegs.Eu estava em New York.Trocáramos de lado no espelho!Foi o princípio de uma nova fase nas nossas vidas!As cartas iriam circular à mesma, mas, daqui em diante, as visitas passariam a fazer parte das nossas vidas. Nunca mais ele passaria um Natal sozinho!Os espelhos são demasiadamente frios para se viver neles. A vida precisa de calor.
Foi isso que aprendi naquele Natal.