sábado, outubro 02, 2004

Um postal de Natal (II)

Um Postal de Natal
(Uma história de amigos invisíveis)
II


Com a passagem dos dias, e sem que conseguisse perceber a razão da devolução do postal nem, tão pouco, a ausência que ia pesando como chumbo, foi-se-me insinuando a certeza de que algo estaria errado. Profundamente errado.
Houve uma altura, teríamos 16 anos, que propusemos trocar números de telefone para podermos falar um com o outro. A primeira vez que ouvimos a voz um do outro foi um choque tremendo. A imagem infantil que permanecia em nós ficou abalada com a realidade. Sem que fosse preciso tomar a decisão de forma explícita, o facto é que nunca mais nos telefonámos, muito embora tivéssemos sempre o número um do outro.
Consegui reunir a coragem suficiente para teclar os algarismos todos e, com o auscultador a tremer-me na mão, deixei que tocasse algumas vezes. Ninguém atendeu.
Nesse dia ainda voltei a tentar a ligação mais duas vezes. Sem resultado. Se dúvida houvera, a certeza ia tomando o seu lugar em grandes passadas.
Algo acontecera.
Impunham-se grandes resoluções.
Resoluções rápidas.
Decisões tremendas.
Que fazer?
Mandar outro postal de Natal? Escrever uma carta? Tentar a ligação telefónica novamente?
Decidir enviar um telegrama.
Telefonei para o serviço de telegramas. Ditei o texto. Ouvi a menina repetir as palavras ditadas (pareceu-me muito impessoal... o que eu ditara saiu-me com sentimento e o que me foi lido chegou-me numa onda de frieza profissional... estremeci.), confirmei a mensagem e desliguei.
No telegrama pedia-lhe que me dissesse o que estava a acontecer, que me explicasse a razão da ausência que se estava a tornar do tamanho do mundo.
Esperei um dia. Dois.
Nada.
Entretanto fui tentando a ligação telefónica.
Também nada.
Em completo desespero interior, fui pesando as hipóteses de acção, já que as primeiras estavam todas falhadas e sem solução.
A ideia de uma viagem ia tomando corpo. Cada dia parecia-me mais inevitável.
Caminhei pelas ruas já iluminadas para o Natal que se aproximava. Ia esbarrando nas pessoas que passavam apressadas. Em cada rosto fui lendo anonimatos que se arrastavam pelas mesmas ruas dia após dia. Foram poucas as caras alegres que vi. Foram poucos os sorrisos a que tive de responder com sorriso. Mesmo no meio do ruído da cidade consegui ouvir os meus passos no cimento do passeio. Por entre a pressa das pessoas e o frio que se fazia sentir consegui pensar e ordenar as ideias que andavam tão confusas.
Decidi.
Entrei numa agência de viagens e marquei passagem de avião para daí a dois dias.
Com o mesmo espírito resoluto entrei em casa, tirei a mala da lado do armário, sacudi-lhe o pó e fui enchendo-a com o indispensável para a viagem. Mentalmente fui tentando evitar que a minha consciência me interrogasse acerca desta decisão tão precipitada.
Nessa noite, depois de uma última tentativa de ligação telefónica, enquanto ouvia uma música calma e compassada, deixei que a minha mente me fugisse por uns instantes.
Revi toda uma infância com o meu amigo de 30 anos de ausência. Os sonhos infantis, os projectos, as desilusões de infância... tudo foi desfilando novamente.
Que tipo de relação havia entre nós? Teria um nome? Como compreender os sentimentos que conseguíamos ter durante tantos anos de ausência? Seria patológica uma relação destas?
Numa era em que quase tudo tem um nome e uma descrição avalizada por vários doutores de várias coisas, a nossa relação de certeza que era tão órfã quanto nós sempre fomos. A ausência de amor maternal levou-nos a procurar um no outro a solução para a falta de afectos logo desde os nossos 4 anos de idade. Acho eu. Este problema foi falado por diversas vezes nas nossas trocas de correspondência. Fomos concluindo que crescemos mutuamente apoiados um no outro, na esperança de conseguirmos superar os nossos medos, receios e incertezas. Este processo permitiu-nos uma proximidade incrível. A presença ausente, o tempo de mediação entre cada afirmação e confirmação, foi-nos permitindo cimentar os nossos caracteres pessoais de forma muito sólida. No tempo que mediava entre as nossas cartas tínhamos que ter soluções: o mundo rodava sem esperar por nós e pelos correios. E fomos encontrando essas soluções dentro de nós mesmos.
Conseguimos crescer lado a lado, com um oceano entre nós.
A vida fora-lhe mais pesada. As pessoas que o acolheram não tinham grandes meios. A sua formação escolar foi sendo feita no sistema público de ensino (cheia de problemas e de falhas). Cursou engenharia mecânica, tendo-se especializado em circuitos urbanos. Ainda não terminara o curso e conseguiu lugar nos serviços públicos da cidade onde vivia. Enquanto estudou foi dependendo de bolsas de estudo e trabalhou sempre nos tempos livres. Ao terminar o curso foi admitido como engenheiro da secção de trânsito da cidade. Aí permaneceu. Feliz. Nas cartas falava-me da alegria que sentia quando conseguia melhorar a fluidez do trânsito da cidade graças a alterações de sentido em algumas ruas, mudança de temporização de alguns semáforos. Era a sua vida. As palavras que atravessavam o oceano vinham cheias de esperança e de alegria. Falava sempre do amanhã. Raramente referia o passado. Muito menos o avaliava ou julgava.
Quer ele, quer eu, sempre considerámos que a vida só nos dera coisas boas. Nunca encontrámos espaço para destruir o passado ou acusá-lo das dificuldades que sentimos ao longo da vida.
Eu tive mais sorte. A família que me recebeu deslocou-se para outro país. Eram pessoas que estavam muito confortáveis na vida. As deslocações eram coisas habituais na sua vida e, ao longo dos 15 anos seguintes, percorri 5 países diferentes. Sempre que o “pai” era promovido, a consequência mais imediata era a preparação das malas e o início de hábitos novos numa terra nova.
Fui sempre muito apoiado por todos. A família tinha mais 2 filhos do casamento. Nunca me senti diferente deles. Fui incentivado a estudar. Nunca me obrigaram tomar decisões de acordo com os seus gostos. Os filhos do casal seguiram os passos do pai e estudaram Economia e Direito, respectivamente. Eles eram mais velhos que eu. Vi-os pensar nos cursos, e fui colhendo aprendizagens. Sempre tive um feitio muito reservado e silencioso: gosto mais de ouvir que de falar. Assim, pude pensar calmamente e optei por Direito. Percebi que todos ficaram muito agradados com a minha escolha.
Consegui acabar o curso antes de nova promoção do pai. Ainda com o canudo fresco, fiz as malas e partimos todos para a Irlanda. Os anos já iam pesando ao pai. A firma exigia-lhe muita atenção e o desgaste ia-se notando promoção atrás de promoção.
Desta vez, logo que instalados na aldeia de Killybegs, o pai declarou que se tratou da última viagem que se fazia. Ir-se-ia reformar daí a 3 anos. A decisão de ficar na Irlanda fora tomada em família e por unanimidade. O que nos apaixonou a todos foi a imensidão daquele verde e o azul do mar da Irlanda.
Semanas depois da chegada, tive oportunidade de escrever ao meu amigo de infância eterna e na resposta ele disse-me que sentira nas minhas palavras o perfume do mar e a frescura da relva. Disse-me que agora estávamos mais perto um do outro, pois o mar unia-nos, costa a costa. Ele estava na Nova Inglaterra, em New York, e eu estava em Killybegs. Com sorte, gracejava ele, podíamo-nos pôr em bicos de pés e vermo-nos um ao outro.
Consegui entrar numa sociedade de advogados com alguma influência nas cidades vizinhas da aldeia. Mas era na aldeia que eu me sentia livre e feliz.
Com a aposentação do pai, a família tornou-se muito mais alegre, pois todos fomos conseguindo encontrar tempo para dedicar uns aos outros. Os anos seguintes foram trazendo outros anos. Os filhos casaram-se com raparigas irlandesas e mudaram-se. O mais velho, o economista, foi para Dublin. O advogado rumou ao sul e lançou as bases de uma grande sociedade de advocacia transeuropeia a partir de Cork.
Eu fui ficando pela minha Killybegs, pelo silêncio da enseada que todos os dias recebia os barcos da pesca. À noite ouvia as canções vindas dos bares da rua principal e que subiam as encostas até à casa que eu escolhi para ser o meu refúgio de fim de dia. Os “meus” pais viviam a menos de 2 km da minha casa. O facto de eu ter ficado junto deles deixou os filhos mais tranquilos nas suas vidas profissionais.
Nunca me consegui decidir a casar. Creio que sempre tive medo de perder o meu espaço próprio. Partilhar foi sempre uma coisa que eu fiz sem qualquer sacrifício e sempre com alegria. Se o casamento fosse apenas um problema de partilha, creio que seria o mais feliz dos maridos. Cedo percebi que casar seria mais que partilhar, pois passava pelo problema de tornar único o que era dúplice. Não consegui convencer-me a arriscar tanto. Confessei, nessa altura, que me sentia demasiadamente preso a mim próprio para poder prescindir dessa posse a favor de outra pessoa.
Sei que me irei arrepender desse medo e dessa incapacidade de doação, mas tenho a consciência tranquila.
O meu amigo casou. Doou-se. Feriu-se. Saiu de um casamento muito doloroso, depois de 5 anos de silêncios agrestes.
Será que o nosso passado nos marcou tanto em tão pouco tempo e perdemos a capacidade de amar sem limites?
Talvez. Nunca concluímos por uma das hipóteses. Nas nossas cartas desses tempos fomos falando do tema, sem que nenhum de nós o tenha encerrado e sem sentir qualquer necessidade de o fazer.