domingo, outubro 03, 2004

Um postal de Natal (III)

Um Postal de Natal
(Uma história de amigos invisíveis)

III


“Duty free”, “duty free”.
Despertei ao som da hospedeira que circulava entre os passageiros a oferecer cigarros, perfumes e relógios sem impostos. Olhei pela janela do avião e só havia nuvens lá em baixo. Segundo o monitor do avião, estávamos a duas horas de New York. Duas horas e meia já tinham passado sem que eu desse por ela. A pressa de chegar a Dublin para embarcar na Air Lingus para New York e a confusão mental em que me encontrava foram mais fortes que eu e aproveitei o som dos motores do avião para adormecer profundamente.
Passei em revista o plano que ainda nem gizara. Iria para New York, instalar-me-ia num hotel qualquer e depois procuraria, na morada que tinha, o paradeiro do meu amigo.
Foi um verdadeiro acto de coragem, o embarcar para New York, 30 anos depois de lá ter saído. À medida que o avião se aproximava do destino, aumentava a minha ansiedade.
Recolhida a mala e carimbados todos os papéis necessários a permanecer nos Estados Unidos por tempo limitado, ainda tive que responder a um inquérito que queria saber se eu trazia animais, comida ou sementes. Ri-me interiormente com a ideia de poder ser considerado um traficante de animais e sementes...
Ainda não tinha respirado a primeira lufada de ar fora do aeroporto e já tinha um taxista a travar ruidosamente a centímetros de mim. Só tive tempo de atirar a mala para o banco de trás e sentar-me e o tipo arrancou a uma velocidade louca até à ligação com a estrada principal. Só então me olhou pelo espelho retrovisor e, numa língua estranha articulou:
- Wea tu?
Foi aí que acordei do atordoamento em que estava desde que embarquei em Dublin. Olhei para o homem e percebi que ele trazia um turbante na cabeça e repetiu a pergunta:
- Wea tu? iú spique iglish?
Respondi que sim. Percebi que ele queria saber para onde é que eu queria ir... dei-lhe a direcção de um hotel que vi numa revista em Dublin e que, segundo os meus cálculos, não estaria muito longe da morada do meu amigo.
- Ok. We be dé in an áua. – disse ele… percebi que demoraria uma hora…
As zonas em redor do aeroporto, que ia ficando para trás, estavam cobertas de um manto de branco sujo. Nevara dias antes, percebi do arrazoado do meu taxista indiano. Ao entrar na zona habitacional da cidade, os passeios estavam pejados de pessoas que corriam apressadamente de um lado para o outro.
Pensei como as pessoas são iguais em qualquer parte do globo.
As montras estavam todas decoradas de acordo com a época e viam-se Pais Natal em cada esquina da cidade. A hora prometida pelo indiano estendeu-se por mais uma e depois mais 30 minutos, até que numa travagem destemida, disse-me ele:
- hea we á. Plaza Hotel. It’s an andred an tuenti dollás.
Paguei, dei gorjeta (é uma ofensa capital não dar gorjeta naquele país... nem mais nem menos que 10% sobre os valores pagos...), saí do táxi com perfume a caril e canela e fui-me instalar no hotel.
Depois de um longo e calmo banho, antes de descer para jantar, ainda tentei mais uma vez telefonar ao meu amigo. Em vão. Não obtive qualquer resposta. Depois telefonei para a Irlanda e informei os meus pais que tinha chegado bem.
Desci à sala de jantar e refastelei-me com um imponente bife, bem regado com um bom vinho californiano. No bar li alguns jornais do dia, terminei o meu charuto com um generoso copo de Whisky Irlandês e fui para o quarto.
Aí adormeci profundamente, cansado da procura, da viagem, do bife e do charuto, ainda com o som dos motores do avião nos ouvidos e com o cheiro a caril e canela do táxi nas narinas.