terça-feira, novembro 01, 2005

Horas Marcadas

A vida tem dessas coisas... Horas marcadas num calendário da imaginação da comunidade. Tempos de diálogo em torno de uma ideia. Gente diferente que se junta para conversar, trocar impressões, lembrar limitações, sonhar novas fronteiras.
As tertúlias marcaram épocas importantes na vida dos povos, desde questões literárias, políticas, sociais, educacionais, nada era proibido discutir em rodas de amigos e conhecidos. Do diálogo nascia a partilha de ideias, de sonhos, de possibilidades, de outras metodologias a experimentar.
Se mais nada se conseguisse com as tertúlias, elas marcavam a comunidade e ajudavam a transformá-la, por vezes até provocaram a queda de mitos.

O projecto Leme, da Santa Casa da Misericórdia da Murtosa, tem promovido algumas tertúlias subordinadas a diversos temas e com diversos intervenientes. O objectivo é fazer renascer a vontade de conversar que os Murtoseiros foram perdendo ao longo dos tempos. Noutros tempos as famílias falavam, os vizinhos conversavam, os amigos encontravam-se para trocar ideias, para se ajudarem. Esses hábitos foram-se perdendo. Muitas serão as causas, pelo que as deixamos para quem quiser gastar o seu tempo a procurá-las. Nós preferimos oferecer algumas soluções: basta sair de casa, procurar os amigos e os amigos dos amigos e conversar. Sem protocolos. Sem regras exageradas.

Temos tido surpresas muito agradáveis com estas tertúlias. Temos ouvido pessoas que têm tanto para dizer que vários dias não chegavam. Temos visto pessoas que no fim da tertúlia, ou dias depois, dizem-me que tinham muito para dizer, mas que ganharam vergonha. Era a primeira vez.

É fantástico como a Murtosa é tão silenciosa sobre as coisas que são tão importantes para a sua vida. A educação dos filhos, dos adolescentes – o primeiro tema que abordámos – deixou inúmeras pessoas com tanto para dizer que ainda hoje trazem ao de cima o que quereriam ter dito. A dor de pais que sentem que erraram na educação das filhas e dos filhos, as dúvidas se esses erros poderiam ter sido evitados se tivessem tido uma abordagem diferente no momento exacto. São alguns dos mitos que importa derrubar e criar novos espaços de diálogo entre pais e filhos, entre educadores e técnicos de saúde.

Novamente tivemos descobertas fantásticas com a tertúlia sobre o associativismo e as colectividades. A paixão que os murtoseiros nutrem pelas suas colectividades ficou patente nesse encontro. O diálogo entre as associações é possível. Bastaria haver um sistema de partilha de experiências, de recursos e de dificuldades para que todas pudessem enriquecer e melhorar a sua acção junto das comunidades que as criaram e defendem.

As outras tertúlias (“O Alcoolismo” e depois “As Tradições”) foram momentos interessantes e muito ricos, percebendo-se que o alcoolismo atinge a unidade da família e desagrega o “cimento social” e que as tradições na Murtosa são mais que um punhado de recordações recolhidas e repetidas: são garantia de identidade e de união de uma gente nascida a respirar o perfume da ria. Gente que percebeu que, afinal, está muito mais unida entre si do que pensava.

Na última “Há Hora Marcada” o tema recaiu sobre a Educação e Formação na Murtosa. Percebeu-se que o dilema que assalta pais e educadores centra-se no papel da escola e na certificação de conhecimentos pelos sistemas não formais. Ficou claro que o modo de encarar a escola sofreu uma profunda alteração desde há 30 anos atrás. A massificação do ensino permitiu o acesso de todos os cidadãos aos instrumentos formais de formação e progressão escolar. Essa mesma massificação trouxe outros problemas como sejam a inadequação do sistema formal de ensino para todos os alunos e o nivelamento inferior da qualidade e exigência.
Hoje, olhando para a Murtosa, vemos muitos mais jovens a estudar e muitos outros a conseguir diplomas de licenciatura. Porém, vemos, igualmente, uma franja muitíssimo significativa e crescente de jovens que abandonam o ensino ou que não prosseguem estudo para além do 3º Ciclo do Ensino Básico.

Nasce a duvida:
- Que Murtosa vamos ter daqui a alguns anos?
Vejamos:
Mercê de migrações, procura de melhores empregos (ou apenas de emprego), fixação noutras terras por motivos de matrimónio ou de adopção de outras formas de estar na vida, muitos jovens da Murtosa nunca mais regressam ao seu local de nascimento.
Os jovens não qualificados vão sobrevivendo pela pesca artesanal, alguma agricultura residual, empregos precários ou em fábricas vizinhas.
O sector dos serviços recruta pessoas cada vez mais qualificadas e habitualmente esse recrutamento é satisfeito com jovens provindos de outras localidades.
Olhamos para alguns dos nossos jovens e vemo-los agarrados pelas doenças, drogas, DST, a própria SIDA que vai aumentando progressiva e silenciosamente na Murtosa, o alcoolismo, a marginalidade identificada. Esta franja da sociedade murtoseira é aquela que tem que ocupar as nossas atenções e ser alvo de intervenção.

O Prof. Arsélio Martins, no âmbito da dúvida sobre os vários sistemas que concorrentemente oferecem certificação do ensino básico (Sistema Escolar formal, SEUC, RVCC, EFA) afirmou algo surpreendente: “Interessa certificar a todo o custo! Mesmo que corramos o risco dessa certificação nos oferecer muitas dúvidas. Sejamos claros: uma mãe com um diploma de 9ºano obrigará os seus filhos a ter, pelo menos, o 9º ano e aspirará a mais.” Simples. Surpreendente. Real.
De facto, a grande alavanca da certificação e da formação são os pais. São eles quem devem “mandatar” os professores e não retirar aos professores a capacidade de educar os seus filhos. Não duvidamos que o problema da disciplina nas escolas nasce na ausência de mandato que os pais deveriam confiar aos docentes. Nasce, também, na ausência de exigência com que alguns docentes encaram o seu magistério. Nasce, também, com os pais “mal-criados” que vêem na escola a sede de todos os males. Nasce, também, da enormíssima quantidade de “saberes” que se pretendem incutir às crianças, deixando o importante submerso pelo acessório.