Com o frio da manhã não há grande espaço para o surgimento de ideias interessantes. Os dedos ficam enregelados e doem ao bater nas teclas do computador, o ecrã embacia-se com o vapor de água da respiração.
Aqui, neste ocidente de Europa, as dores da tragédia ocorrida na Ásia só chegam como eco longínquo, como se fosse uma história de outros.
O arrumador de carros, a tiritar de frio, vai tentando convencer um ou outro condutor mais apertado de horas a estacionar onde lhe indica, com a esperança de meter ao bolso mais uma ou outra moeda.
Por entre o gelo da manhã, passam centenas de pessoas apressadas para os empregos das oito, rostos fechados e incomodados com o frio que corta. Os carros passam indiferentes a este povo, transportando outras pessoas que, em breve, se juntarão àquelas que caminham nos passeios. O arrumador, de cigarro ao canto da boca e de mãos nos bolsos de um casaco roto e gasto, vai acenando aos condutores a convidá-los a ocupar o espaço vazio que ele reserva.
Sai dos portões do grande hospital metropolitano uma carrinha funerária, transportando alguém que deixou o mundo neste fim de ano. Pelo mesmo portão entram outras centenas de pessoas que procuram remédio e cura para os seus males. Portões que parecem engolir toda essa gente anónima em busca de solução.
Passa a máquina de limpeza de ruas, lenta, barulhenta, indiferente ao sofrimento que lhe passa ao lado, sempre limpando a cidade, sempre zelando pelo bem estar dos povos organizados na grande cidade.
Aqui, do alto do monte, tudo parece mais urgente. O mundo ganha nova dimensão, o sofrimento adquire rosto, carne, corpo, dedos que se estendem. O arrumador surge como um semi-deus que conhece os segredos da criação. Os ecos do horror chegam mais fortes e audíveis. Tudo se transforma nesta gelada manhã de fim de ano.