Estamos na época pré-natal.
Nem mais.
A tal época da tolerância e do perdão, em que todas as celebridades mais ou menos conhecidas e as que o querem vir a ser, desatam a confessar o seu ilimitado amor pelo próximo e o excelso carinho pelas crianças abandonadas.
Nunca consegui sentir esse desmesurado carinho e amor pela humanidade, assim, sem mais nem menos, numa época definida pelo calendário.
Defeito meu, certamente.
É um tempo de espantos, este que vivemos agora.
Espantamo-nos com as iluminações das ruas e das lojas, avaliamos a capacidade de gestão de uma autarquia pelos watts pendurados nos postes, criticamos os excessos das despesas exigidas pela vida social de cada um, espantamo-nos com a família Beckman ter contratado um mordomo só para abrir os milhares de presentes que esperam encontrar debaixo da árvore da sua mansão, deploramos os sem-abrigo e exigimos soluções rápidas para esses problemas, entoamos canções da infância que nos trazem de volta memórias queridas. Vivemos no espanto pré-natal.
Vem tudo isto a propósito de algumas reflexões pessoais provocadas por um comentário num blog murtoseiro. Escrevi há tempos que “a realidade cegou-nos a vista cansada. Virámo-nos para o vento e aspirámos o suave perfume da maresia dando as costas ao futuro.Em silêncio esperamos o amanhã construído pelos outros.”
No fundo, a psicose murtoseira gira em torno deste facto ancestral: preferimos olhar o passado e deixar o futuro para os outros, ignorando que esse futuro já é hoje. Preferimos dizer mal de algo a arregaçar as mangas em favor de algo. É mais cómodo manter as distâncias, de modo a não corrermos riscos, de modo a não sermos julgados.
O tal comentarista anónimo afirmou que a Santa Casa da Murtosa estaria às portas da bancarrota. Não sei se uma instituição deste género possa arriscar tal fenómeno contabilístico. Duvido. Aprendi nas páginas do Padre Américo que as Instituições de bem-fazer não precisam de grandes fundos, precisam de pessoas com almas fundas. Se as instituições merecerem o apoio da comunidade, haverá sempre um amanhã. Mesmo com as bombardas que a Segurança Social e alguns jornais andam a lançar contra a Casa do Gaiato, não tenho a menor dúvida de que esta Obra permanecerá inalterada. Certamente sairá reforçada e renovada, pois irá buscar a sua mística às origens do Padre Américo. Em relação à Santa Casa da Misericórdia da Murtosa, a bancarrota não será uma preocupação a fazer sofrer as próximas gerações de murtoseiros. O que deveria preocupar os murtoseiros (todos) era o futuro (o hoje) da Murtosa. E a Murtosa não é a Câmara Municipal ou os políticos de passagem. A Murtosa é um povo, um conjunto de realidades sociais, comunitárias, culturais que não estão reféns de uma realidade política ou de uma única instituição. A Murtosa deveria ser repensada, refundada, re-amada pelos seus habitantes, quer tenham nascido nela quer não.
O “Jornal da Rua”, ao publicar um texto do Santos Sousa sobre o mal-dizer, vem sublinhar este problema que todas as terras sentem, não sendo exclusivo da Murtosa.
É mais fácil avaliar que ser avaliado.
Qualquer cidadão ao oferecer o seu tempo livre a uma instituição, clube ou associação, corre o risco de ser avaliado, de ser mal-interpretado, de ser interpelado pelos seus pares, de ser afastado ou de ser esquecido. Ninguém é eterno, nem ninguém deve confundir uma instituição com uma pessoa.
Somos peregrinos a prazo num mundo provisório e mágico, e quanto melhor soubermos compreender esse risco de efemeridade pessoal, mais facilmente saberemos assumir as responsabilidades de que cada comunidade necessita para viver e crescer.
Por vezes poderemos correr o risco da tentação de desejarmos ser reconhecidos pelo nosso trabalho ou de sermos levados em ombros pelos outros. Nada mais errado e falacioso. Ninguém gosta de carregar os outros aos ombros – só se for num caixão...